Especial Seca: A carta da menina que não viu o inverno
Wigna não ajudou a mãe e o avô a plantar. A seca não deixou
O DIA – ALEXANDRE MEDEIROS
Upanema (Rio Grande do Norte) – Com a caligrafia caprichada de quem quer ser professora, a estudante Wigna Graziele Pereira da Silva escreveu em fevereiro uma carta a um amigo carioca em que descrevia a seca no assentamento rural de Monte Alegre, em Upanema, no semiárido potiguar. “Eu e minha família temos um lote e cuidamos e plantamos. Esse ano nós não plantamos porque não teve inverno”. No sertão, inverno é sinônimo de chuva. Mas a água não veio, e a menina não ajudou a mãe e o avô a colocar na terra as sementes de milho, feijão e sorgo. Foi uma estação inteira perdida — a primeira que ela viu faltar em seus 12 anos de vida.
A carta de Wigna tem o desenho de um campo florido e uma árvore com frutos em forma de coração. Um cenário que só está nos sonhos da menina, já que tudo em volta da casa de estuque onde ela nasceu e vive é o retrato típico da caatinga: pedras, terra seca rachada, oiticicas de galhos nus, xiquexiques e mandacarus. “Foi ruim não ter inverno. A gente não plantou e não vai colher”, disse Wigna, de olhos arredios e jeito tímido, no dia 11 de junho, diante do amigo carioca que foi visitá-la depois de receber a carta — e que assina esta matéria.
Wigna Graziele está rodeada de mulheres em Monte Alegre. São elas que resistem à seca no assentamento e em quase todo o semiárido do Nordeste. Salvo a exceção dos mais velhos — como Azuil, o avô que ensinou Wigna a plantar —, os homens foram embora, em busca de ocupação durante a estiagem prolongada. Alguns voltam para passar os fins de semana em casa, mas é raro. Em geral, o trabalho é distante, e o dinheiro, contado. O pai de Wigna foi embora há tempos. A mãe, Sandilma, recebe exatos R$ 274 mensais — R$ 134 do Bolsa Família e R$ 140 de royalties do petróleo (o Município de Upanema é produtor). É com esse dinheiro que ela sobrevive com as filhas, Wigna (pronuncia-se Uíguina) e Wisla Gabriele, de 5 anos.
A agricultura de subsistência é a base produtiva de Monte Alegre, e as famílias complementam a renda com o Bolsa Família. Plantam para consumo próprio e vendem o que sobra nas feiras locais. Mas isso quando chove. Em 2011 choveu pouco na região, em 2012 não veio água. Este ano? Quase nada. Em Monte Alegre, foram quatro dias de chuva em abril, insuficientes para animar as pessoas a plantar o de sempre: milho, feijão, sorgo, mandioca. “Se a gente planta e não vinga, ainda perde as sementes. Ninguém teve ânimo de plantar. E já era época de colheita agora”, lamenta Sandilma. As famílias de Monte Alegre — e, de resto, de todo o semiárido — gastaram o estoque de alimentos de 2011 para 2012. O pouco que restou já foi consumido neste início de 2013. Estão sem colheita e sem estoque.
Wigna poderia ter desenhado esse quadro de desolação em sua carta, mas preferiu usar os lápis de cor para riscar no papel o campo de flores e a árvore com frutos. Se o inverno não passou por Monte Alegre em forma de chuva, ele colore de verde alguns espaços no chão seco. São hortas que teimam em florescer sem depender de chuva, nem de ajuda oficial. Germinam graças a iniciativas locais, nas quais Sandilma está envolvida, junto às outras mulheres de Monte Alegre. Essa brigada feminina de resistência à seca encoraja Wigna a acreditar em dias melhores, a despeito das evidências em contrário.
O projeto dos quintais produtivos é uma dessas iniciativas. Ele foi levado a Monte Alegre pelo Centro Feminista 8 de Março, o CF8, uma organização nãogovernamental com sede em Mossoró (RN), também formada basicamente por mulheres, e que recebe apoio de entidades internacionais, como a Action Aid. O projeto utiliza técnicas de cultivo que valorizam a pouca água disponível para a agricultura.
Uma das técnicas consiste em forrar com lona de caminhão um buraco feito na terra, montar uma pequena estrutura de tubos de PVC furados em vários pontos, jogar terra por cima e plantar as sementes de hortaliças. A água é colocada por duas aberturas em cada lado do canteiro, escorre pelos tubos e sai pelos furos, espalhando-se por baixo da terra e acima da lona. Dessa forma, a água não se esvai sugada pela terra seca, mantendo-se mais tempo em contato com o plantio. O resultado? Coentro, cebolinha, salsa e até tomate-cereja.
“É o canteiro econômico. A água pode ser economizada de outras formas, até mesmo usando uma garrafa PET como uma espécie de conta-gotas instalado pouco acima da base da planta. De pingo em pingo, a terra ali embaixo se mantém úmida e favorece a germinação”, explica Ivi Aliana Dantas, agrônoma do CF8.
Um quintal produtivo dos mais simples pode ser montado por R$ 1.500. Esses recursos são obtidos pela ONG e seus parceiros por meio de doadores do Brasil e do exterior, que ‘apadrinham’ crianças do semiárido e contribuem mensalmente para financiar projetos na região. “É um vínculo solidário forte, pois os doadores recebem periodicamente cartas das crianças e informes sobre como os recursos são aplicados”, diz Sueli Oliveira, do CF8.
Outra iniciativa da ONG que tem sido eficaz é a criação rotativa de galinhas, já implantada em Monte Alegre e em outros assentamentos rurais de 14 municípios do semiárido potiguar. Para cada comunidade, a ONG aplicou uma verba de R$ 500 — também obtida por meio de doações — para a compra de galinhas. Em Monte Alegre, cada mulher que comanda a família recebeu duas galinhas jovens, que são criadas, geram pintos e ovos e são devolvidas depois de seis meses, para serem emprestadas a outras famílias. “A seca fez com que se perdessem muitos animais, mas o rodízio resiste”, garante Cláudia Lopes, assistente social do CF8.
Essas iniciativas locais prolongam a resistência diante da estiagem. Mas todas dependem de água. E se ela não vem dos céus, tem que vir de algum lugar. Quase todas as casas de Monte Alegre têm cisternas de 16 mil litros preparadas para receber água da chuva. São as cisternas “de beber”. Sem chuva, elas são supridas pelos carros-pipa: cada um leva oito mil litros e cobra R$ 150 por vez. Em épocas mais agudas, o Exército entra em cena para organizar a distribuição de carros-pipa pagos pelo governo federal. Nos primeiros seis meses de 2012, 3.360 carros-pipa foram contratados pelo governo, ao custo de R$ 164,4 milhões.
Sandilma lembra bem desse período de agonia. “A gente já estava bebendo água salgada, de poço. O carro-pipa do Exército dava uma lata de 20 litros por dia por pessoa. Aqui em casa somos três, eram três latas para beber, tomar banho, cozinhar, usar nos banheiros.” A agonia deve vir de novo, ninguém se engana. Se não choveu até agora, esse inverno de 2013 já cumpriu sua cota de esquecimento. E o que vem pela frente, já a partir de fins de agosto, é uma nova estiagem.
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Depois da seca de 2012, choveu por alguns dias este ano em algumas áreas do semiárido. Mas muito pouco: 99 dos 167 municípios potiguares ficaram em estado de “seca extrema”.
Alguns reservatórios e açudes encheram um pouco, a aparência da caatinga ficou verde em alguns pontos, mas não houve plantio, e o rebanho que restou está debilitado. “Culturas tradicionais do semiárido, sobretudo a do feijão, precisam de ao menos 90 dias de chuvas regulares para vingar. Se isso não ocorre, é o que chamamos de seca verde. A chuva se concentra em dez ou 15 dias, mas não é suficiente para sustentar a produção, que se perde inteira, embora você veja os brotos verdes. É terrível porque o agricultor, além de perder as sementes, vai perdendo a esperança”, avalia Avanildo Duque, gestor de programas da Action Aid. “E agora se inicia um novo ciclo de estiagem, sem que o solo tenha se recuperado. É preocupante o cenário que vem pela frente.”
As mulheres de Monte Alegre parecem preparadas para o pior, mas ainda encontram motivos para sorrir quando se reúnem, contam histórias, gozam umas às outras pela ‘estiagem’ de maridos. As que reencontram os homens nos fins de semana ficam sem graça ao serem apontadas na roda como privilegiadas. “Aquela ali tá se rindo porque o marido veio assinar o ponto no sábado”, brinca Alzinete de Andrade, uma das mais experientes do grupo. São elas que cuidam do gado que restou, das galinhas, dos filhos, do quintal. “A gente fica sendo o homem e a mulher da casa”, diz Magislânia Luzia da Silva, expressando o sentimento de cada uma das mulheres das 106 casas do assentamento, criado em 1997, só quatro anos mais velho que Wigna Graziele.
E a menina já tem o exemplo de resistência dentro dela. Acorda cedo para estudar, ajuda a mãe nas tarefas da casa e está pronta às 11h para esperar o ônibus que leva as crianças do assentamento para o colégio em Upanema, onde cursa o 6º ano. Só volta para casa às 18h. Ficou triste este ano porque não plantou e não colheu, mas não se abateu: “Quero ser professora para ensinar os outros a aprender, como eu aprendi, a acreditar que a gente pode ser feliz. Eu não plantei, mas brinquei de bola, de boneca. E um dia vou plantar de novo, mais meu avô”. Vai sim, menina, vai sim. Coragem e esperança também não dependem de chuva.
Fonte: Jornal O Dia Brasil – Veja todas as fotos AQUI