LUTO É DOENÇA?

Quando passa de duas semanas, a tristeza causada pela perda de um ente querido deve ser tratada com remédio e terapia, segundo psiquiatras dos EUA

Condição da existência ou caso de saúde pública? A sensação de impotência, tristeza e até desespero que caracteriza o luto está prestes a ser reconhecida como uma patologia clínica, passível de tratamento com remédios e terapia. Ainda este ano, o mal-estar provocado pela perda de um ente querido passará a figurar no ISM-5, a quinta edição de uma espécie de manual que cataloga os transtornos mentais, elaborado pela Associação Ame­ricana de Psiquiatria. Também entrará no rol de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS), chamado de ICD, que está em sua 11.ª edição.
A medida, como tudo que envolve o conceito do que é normal na área da saúde mental, é polêmica. O comitê que organiza o ISM-5 entende que se após 14 dias a pessoa ainda estiver de luto, ela pode ser diagnosticada com transtorno mental por um psiquiatra ou psicólogo e, sendo assim, medicada, encaminhada para terapia e até internada, dependendo do caso.
Para o professor de Psicologia da Morte da Pontifícia Universi­dade Católica do Paraná (PUCPR), Cloves Amorim, essa mudança é temerária. “Aquilo que é tão comum entre nós não pode ser considerado uma patologia”, afirma. Ele explica que o luto é necessário – “um tempo para nos darmos conta da perda que sofremos e para que possamos nos reorganizar e seguir com a vida, apesar da saudade”.
Por isso, os riscos por trás da medida devem ficar claros, segundo o professor. Como quase todo ser humano costuma sofrer por mais de duas semanas pela morte de alguém querido, isso significaria que a maioria da população está doente? “Uma parte dos profissionais está com um olho na caixa registradora e outro na indústria dos medicamentos”, critica.

Amorim lembra que a noção de luto é variável nos EUA, no Brasil e no resto do mundo. “A ideia de que não podemos ser frágeis, ter problemas ou ser tristes é muito forte lá fora, mais do que aqui. A cultura tem uma influência muito grande na forma como percebemos o luto”, analisa.
Definição frágil
Uma das maiores especialistas em luto do país, a professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) Maria Helena Pereira Franco faz uma série de críticas aos parâmetros que definirão o luto como uma doença. Fun­dadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto (Lelu) na instituição, ela afirma que não faz sentido usar como único critério para o diagnóstico o tempo de luto.
A professora afirma que há questões muito particulares que influenciam nesse processo e que cada pessoa responde de uma forma. Um dos aspectos mais importantes é a relação entre o enlutado e a pessoa que morreu. “No caso de uma mãe que perde o filho jovem, que é um processo anti-natural, o luto é diferente do de alguém que perde um pai idoso ou um parente mais distante. É mais intenso, e ainda assim, não se pode dizer que seja patológico.”
Outros aspectos apontados por Maria Helena são a natureza da morte – por doença, violência, acidente ou suicídio, por exemplo –, se foi repentina ou não, e se houve sofrimento, além da idade da pessoa enlutada, já que crianças, adolescentes e adultos respondem de formas diferentes à perda. “Isso precisa ser levado em conta, sob o risco de causaramos um desserviço grande sobre um assunto muito complexo e que não pode ser visto de forma simples.”
Sociedade ignora e até teme o enlutado
Como tudo que envolve a morte, o luto é cercado de tabus e ainda pouco aceito socialmente, apesar de ser vivido cada vez mais publicamente por meio da mídia. Exemplos não faltam: grandes tragédias naturais; mães que perdem os filhos para a violência urbana; e personalidades públicas cuja morte cause comoção.
Estar em luto, hoje, significa escancarar a dor, numa época em que a frustração, a perda e os sentimentos negativos não são aceitáveis, quando tudo deve ser rotulado e então curado – de preferência com medicamentos. “Não há mais espaço para a tristeza. Ficar triste é sinônimo de fracasso, afeta a produtividade. Não se pode perder nunca”, avalia o psicólogo Cloves Amorim, da PUCPR.
Risco
Nesse sentido, classificar o luto, já mal compreendido, como uma doença mental, pode ser arriscado, de acordo com a psicóloga especialista em Saúde Mental Joyce Fischer. Há dois cenários possíveis, ambos perigosos, e que tendem a tornar ainda mais obscuro o assunto, ao invés de lançar-lhe luz. 
O primeiro é que, ao demonstrar sinais de luto, uma pessoa já seja considerada mentalmente doente. “Como esse processo não é bem aceito e visto como normal, a tendência é que as pessoas sejam rotuladas como doidas”, afirma. Nesse caso, estariam expostas desnecessariamente a tratamentos e medicamentos, o que poderia, en­­tão, de fato, prejudicar sua saúde.
Outra possibilidade é de que, numa tentativa de evitar a rotulação, o enlutado tente esconder sua situação, fingindo que não houve luto, adiando um processo importante para a reorganização da vida. “Isso, sim, pode gerar problemas de saúde, pois quem não vive o luto não consegue dar um tempo a si mesmo para se recompor e seguir adiante. Evita um processo natural, que não podemos negar.” 
Interatividade
Você concorda com a tese de que o luto é uma doença? Por quê?
Fonte: Gazeta do Povo

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